A bruxa: o ícone feminista mais antigo
umarmadeira
ARTIGO DE JOANA MARTINS
O espectro da bruxa abrange factos e ficção. Uma mulher velha, enrugada, a segurar uma maçã envenenada na mão direita, ansiosa por se vingar de uma bela jovem. Uma solteirona experiente casada com os seus livros, e conhecedora das propriedades mágicas de muitas plantas. Uma mulher extremamente bela à custa de feitiços sombrios, extremamente sedutora com os seios praticamente à mostra e um olhar hipnótico, que controla e manipula os homens que quiser…
A bruxa personifica o medo, porque controla forças que transcendem o corpo mortal e encarna uma feminilidade poderosa, livre da influência masculina ou, simplesmente, uma mulher livre. Ao longo da História, a figura da bruxa desafiou narrativas patriarcais personificando o poder das mulheres, tornando-a num dos ícones feministas mais duradouros de todos os tempos.
A figura da bruxa tem origem nas deusas da mitologia de diversas civilizações, com um legado que se estende até há milhares de anos atrás, desde o mito de Inanna, a irmã do deus-sol Utu na mitologia Suméria, às histórias hindus da deusa Kali e mitologia celta da deusa Brigit, ambas personificando a Mãe Natureza, e os contos da deusa Hécate na Grécia Antiga, associada à magia e bruxaria. Estas deusas tinham a capacidade de gerar e tirar a vida, e eram adoradas por isso. Ainda assim, as suas capacidades eram sempre alvo de dúvidas. À medida que as religiões monoteístas foram se expandindo e ganhando poder, as crenças foram se consolidando em torno de uma divindade onipotente masculina, havendo uma maior secundarização das mulheres em todos os aspetos.
Entre os séculos XIV e XVIII na Europa, milhares de pessoas acusadas de bruxaria foram torturadas e mortas pela Inquisição, um grupo de instituições dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana, com o objetivo de “combater a heresia”. Embora alguns homens também tivessem sido apanhados na confusão deste pânico em massa – muitos deles, visionários e cientistas – a maioria das pessoas horrivelmente torturadas, abusadas sexualmente e queimadas na fogueira eram mulheres. Curandeiras e parteiras com grande conhecimento sobre a reprodução e o corpo humano, que ameaçavam educar e ensinar uma população altamente – e convenientemente, para a igreja – ignorante. Mulheres que eram alvo de suspeita por possuírem “demasiadas” terras, riqueza ou influência. Eram mães, irmãs e filhas, que estavam no lugar errado à hora errada. E foram, pura e simplesmente, castigadas por isso.
À medida que as bruxas foram capturando a imaginação do público nos livros e nos ecrãs, o seu retrato sempre se baseou no medo dos homens da sexualidade feminina, ou na representação simplista de mulheres velhas, ciumentas e invejosas, revoltadas contra mulheres mais novas, ingénuas e “bonitinhas”. Os exemplos de histórias da cultura popular onde as bruxas são assim retratadas, par a par com inúmeros estereótipos para catalogar as “princesas boazinhas” e “normalizar” a violência doméstica, são inúmeros. Alguns exemplos: Cinderela, Bela Adormecida, A Bela e o Monstro, Branca de Neve, Rapunzel.
À medida que o movimento feminista foi ganhando visibilidade, a representação da bruxa foi se tornando cada vez mais complexa. A narrativa deixou de ser escrita apenas por homens, e a sua história foi reformulada por mulheres. Um exemplo recente é a escritora J. K. Rowling e a sua saga “Harry Potter”, que descreve o quanto é necessário o estudo para se tornar num/a bruxo/a, e desafia estereótipos como, por exemplo, na sua representação de Hermione Granger. Ao mesmo tempo, a argumentista Linda Woolverton atualizou a história de “Bela Adormecida” para humanizar a bruxa, no filme de 2014 “Maléfica”, numa tentativa de acabar com as personagens exclusivamente más ou boas.
Ainda assim, tanto em séries como em filmes, ainda estão presentes perigosos estereótipos, para vender uma versão menos política e mais consumível da bruxa, mas a expansão do feminismo na cultura popular tornou estas escolhas menos viáveis. Desde “As bruxas de Eastwick”, passando por “Penny Dreadful” e “American Horror Story: Coven”, os novos retratos das bruxas abriram, simultaneamente, velhas feridas na história da opressão das mulheres, e ajudaram a despertar as pessoas para as injustiças que as mulheres sofreram ao longo da História – muitas das quais continuam até aos dias de hoje.
As acusações de bruxaria foram, outrora, utilizadas para controlar o comportamento das mulheres (e ainda são, num número impressionante de países em todo o mundo), mas agora, mais do que nunca, as bruxas tornaram-se em símbolos de mulheres que desafiam dificuldades e obstáculos. Uma vez que os direitos reprodutivos, a igualdade salarial, a liberdade sexual e a luta contra a violência sobre as mulheres continuam a ser alguns dos objetivos principais da luta feminista, a bruxa vai permanecer como uma representação das nossas frustrações e da nossa luta pela igualdade e poder, para além do patriarcado.