Zig Zag
umarmadeira
ARTIGO DE PAULO SOARES D'ALMEIDA
A RTP decidiu retirar – entretanto, depois de fazerem nova dobragem, já o repôs – um programa da sua grelha. Quando vi a notícia especulei qual teria sido o excluído: o meu primeiro pensamento apontou para a transmissão de touradas. Fez-me todo o sentido deixar de passar, em sinal aberto, uma actividade que consiste em torturar um ser vivo a sangue frio para deleite dos seus “aficionados”. Também me ocorreu o Prós e Contras, por considerar estar em queda livre há imenso tempo. Qualquer dia, ainda dedicam um episódio para debater o racismo com um painel, quase todo ele, composto por caucasianos. Quer dizer, tarde demais, já aconteceu.
Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, desde que não me tirassem o galanteador piscar de olho do José Rodrigues dos Santos, o nosso Dan Brown, estava pronto para qualquer hecatombe.
Abri a notícia e li que se tratava de uma série chamada Destemidas. As queixas ao provedor do telespectador e a revolta nas redes sociais tinham sido imediatas à sua exibição. Queixavam-se de “doutrinação ao socialismo, apologia ao Marxismo ou à identidade de género”. A indignação era tal que senti que se tratava de algo perigosíssimo. Vi que a série está incluída no Zig Zag, que é o espaço de programação infantil do canal público. Confesso que estranhei, mas podia ser um Cavalo de Troia. Ou, neste caso, de Moscovo. A sinopse descreve o programa como “Histórias de mulheres excecionais, ousadas e decididas que fizeram o que quiseram e lutaram pelos seus sonhos. Mulheres de ideais, épocas, idades e mundos muito distintos, que foram capazes de ir para além das convenções e preconceitos sociais e triunfaram perante as adversidades. Cientistas, atrizes ou ativistas que desejaram ser independentes, viajar, ser úteis, estudar, trabalhar, chegar ao poder de um país, ou simplesmente... salvar um farol!”.
Fiquei confuso, não consegui identificar vestígios soviéticos, pelo contrário, pareceu-me muito interessante e empoderador um programa infantil que destacava a luta e coragem de mulheres pela luta de direitos humanos. Isto, em épocas da nossa história em que ser mulher era sinónimo de ter menos direitos. Não quis acreditar que se tratava de enviesamento ideológico e, como tal, avancei para a visualização do episódio. Senti a adrenalina de estar prestes a ver algo extremamente transgressor. Por precaução, optei por fechar a janela e a porta pois tenho um vizinho saudosista do Estado Novo e, apesar de ser uma terra belíssima, não me convinha muito ir agora para Peniche.
O vídeo começa com uma música, temi que fosse a Internacional Socialista, mas não. Falso alarme. O alegado episódio prevaricador é o número 19, que se foca na vida da activista francesa pelos direitos das mulheres, Thérèse Clerc. No fim, percebi os três motivos que chatearam tanta gente: ela ser a favor do aborto, beijar outra mulher e a referência à importância de Karl Marx na sua vida. O programa é destinado a um público-alvo dos 10 aos 13 anos. Não tenho estudos suficientes para afirmar com toda a confiança do mundo que seja a idade ideal para se falar de aborto, contudo, acredito na importância da educação sexual nas escolas. E, quando digo escolas, não falo em infantários, mas talvez seja bem necessária no ensino anterior às Universidades Seniores. O beijo entre duas mulheres gerou polémica, não por homofobia – dizem – mas por quererem ser os pais a apresentar a homossexualidade às suas crianças, em vez de o descobrirem através de um televisor. Bem, a não ser que os filhos vivam, como a personagem de Sandra Bullock, no filme Bird Box, de olhos vendados o tempo todo, lamento ser o mensageiro do apocalipse, porém, acredito que seja apenas uma questão de tempo até verem um casal homossexual a beijar-se na rua. Quanto a Marx, para uma criança, é apenas o cão da série juvenil que acreditam ser um descabido live action da Patrulha Pata. No final do episódio, caso as crianças não se tenham distraído no TikTok durante o mesmo, na pior das hipóteses, vão apenas perceber alguns dos pontos da nossa constituição, tais como ser crime discriminar pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género. Bem, pelo menos ainda não associaram o facto de o Bob, o Construtor utilizar nas suas obras ferramentas como foices e martelos como uma mensagem secreta para os jovens Illuminati.